quinta-feira, 30 de junho de 2011

Quantos Nicolaus? Quantos gritos mudos?

Nicolau era um lavador de pratos, o melhor. Quando achou que ia ser despedido e trocado pela máquina de lavar louças entrou em desatino...

Acho que esses pequenos pedaços do livro de Henrique Schneider mostram muito bem como o mundo é, como as pessoas são... mesmo as com as melhores intenções.

É grande, mas acho realmente que vale a pena ler.

O Grito dos Mudos

"[...]Agora era quase um velho, a palavra não saía-lhe da cabeça - velho, velho, velho -, mas por trás ainda havia outra pior - desempregado, desempregado, desempregado-, vontade de atear fogo no restaurante: morreriam dono, pratos e máquina de lavar, nunca mais os restos de um prato seriam servido em outro.

Alguns acham que podem tudo contra aqueles que não têm voz, cujo grito é mudo, mas que injustiça, e quantas injustiças lhe passavam cotidianamente pelos olhos sem que se desse conta - a anciã envolta em trapos, sentada num canto da calçada, uma garrafa de cachaça vazia ao lado, a dor de toda uma vida nas rugas do rosto, comendo um pedaço de pão seco, e ninguém parando, ninguém parando. Agora é que Nicolau via que ninguém parava, nunca: o homem de gravata seguindo em frente, a mulher fingindo não ver, o menino desviando seu caminho - ninguém parava e ela poderia morrer ali que ninguém pararia, talvez porque a velha rescendesse a mijo e merda seca; quantos existiam assim naquela cidade, sem nada, esperando que alguém parasse? [...]O louco dança e segura com força um pacote cujo conteúdo é um mistério para todos, as pessoas passam e desviam, saem do seu círculo de dança,alguns rindo e outros fingindo ter pressa. Nicolau pensa que o louco é mais um, tem mais ou menos a sua idade; "quem sabe não era lavador de pratos antes de enlouquecer?" [...] mas Nicolau só vê a cena sem saber o que o louco pensa, considera aquilo tudo muito deprimente, não sabe bem a razão, senão que é deprimente: um louco no meio da rua, e ninguém o vê, os olhos enxergam, mas não vêem; "quanta indiferença, meu Deus, quanta indiferença, as pessoas estão vivendo para si e para mais ninguém".

[...]

[...]Agora ela estava novamente segura, o patrão era um homem bom, "claro que se modernizava", e Nicolau se enchia de orgulho ao saber que operaria a máquina. [...]Cruzou rápido por um homem gordo e uma moça loira - como eram parecidos todos os rostos! -, mas não chegou a reparar neles com maior demora, queria chegar em casa,[...]envergonhava-se da vontade besta que tivera de atear fogo ao restaurante, o dono era um homem bom e justo, só não trabalhava quem não quisesse, "esses vagabundos que vagueiam pelas ruas em vez de procurar serviço, para reclamar que as coisas estão erradas?, têm é que trabalhar"; o próprio sindicato só sabia gritar, e ele não gostava de gritos, por isso não ia nunca às assembléias, "pura perda de tempo", tinham é que cuidar de trabalhar e nada mais, só assim o país cresceria. Quando já estava chegando na parada, reparou na anciã envolta em trapos, sentada em um canto da calçada, uma garrafa de cachaça vazia ao lado, a dor de toda uma vida nas rugas do rosto, comendo um pedaço de pão seco, e Nicolau tentou fingir que não via, sem conseguir esconder de si o nojo que lhe causava o odor rançoso da mulher, puro mijo e merda seca; "por que não trabalhara quando era jovem, agora estava assim porque queria, chances existiam pra todos". A mulher estendeu-lhe a palma da mão, trêmula, e Nicolau desviou, apressou o passo, quase correndo; [...]só o que não esqueceria tão cedo seria a noite com a puta, aquilo ficaria como uma mancha, talvez para o resto da vida; "como tinha sido capaz de tamanha perversão, Naná em casa esperando-o, mesmo que há tempos já não fizessem mais nada, ela estava lá, não precisava ter-se deitado com uma mulher da vida, uma qualquer", e invadiu-lhe o medo de alguma doença, tinha tudo para pegar uma doença, "naquele antro tudo era possível, e a mulher trepava com cinco ou seis por noite, vagabunda e porque queria, pois chance havia pra todo mundo, aquela conversa besta de estigma de puta ficava para todo o sempre, desculpa esfarrapada de quem não quer trabalhar". [...]mas "Deus Nosso Senhor é grande e nada vai acontecer".[...]"Então, fechou os olhos, o cansaço finalmente tranqüilo e, enquanto sorria solitário, em paz consigo mesmo e com o mundo, algum louco triste começava a dançar uma valsa em frente a uma loja de discos qualquer."

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